Elaborado pela militância antimanicomial do RUA
Há 33 anos, o movimento da luta antimanicomial ocupa as ruas das cidades pelo país pautando a liberdade para a atenção à loucura. Em 2020, infelizmente, a pandemia do coronavírus tem produzido reorganizações intensas nas nossas formas de viver, de se organizar politicamente, de encontrar o outro… A pandemia tem feito com que a gente, que entende que a rua é a parte principal da cidade, tenha que repensar o exercício da liberdade. Nós, militantes do Movimento RUA - Juventude Anticapitalista, nos somamos às mobilizações virtuais que estão sendo construídas pelos usuários, familiares, profissionais e militantes da saúde mental em 2020, para reivindicar os ideais de liberdade, dignidade e respeito.
Se em dezembro de 1987, no II Congresso Nacional dos Trabalhadores em Saúde Mental, os presentes indicam uma ruptura com a exclusão e a violência institucionalizadas contra os usuários, ainda hoje temos muito a avançar em nossas lutas. O Estado segue sequestrado por aqueles que colocam os lucros acima da vida, que operam o neoliberalismo não só na privatização dos serviços de saúde, mas no sucateamento e desmonte da Rede de Atenção Psicossocial e na responsabilização individual pelos cuidados que devem ser coletivos. Já abordamos antes em alguns textos as relações profundas entre saúde mental e sociedade, elaborando os motivos pelos quais entendemos que a ordem social capitalista produz efeitos absolutamente devastadores à saúde mental e ao bem estar individual e coletivo. E que as formas mais potentes para transformação de tudo isso passam pela afirmação do anticapitalismo e construção da transformação total dessa realidade.
Entendemos que há uma relação direta entre a luta antimanicomial e a luta anticapitalista em suas concepções. Basta retornar à Carta de Bauru, de 1987, onde os antimanicomiais reivindicam que “o manicômio é a expressão de uma estrutura, presente nos diversos mecanismos de opressão desse tipo de sociedade. A opressão nas fábricas, nas instituições de adolescentes, nos cárceres, a discriminação contra negros, homossexuais, índios, mulheres. Lutar pelos direitos de cidadania dos doentes mentais significa incorporar-se à luta de todos os trabalhadores por seus direitos mínimos à saúde, justiça e melhores condições de vida”.
É essa capacidade da Luta Antimanicomial de envolver e organizar tantas pessoas da sociedade, colocando-as em movimento contra o sistema, tensionando as bases que estruturam o capitalismo, que nos conecta, que se revela como a cada dia mais central para nós, que queremos a liberdade para todos e todas. Em 2017, no encontro de 30 anos do Movimento Nacional da Luta Antimanicomial, um novo manifesto reafirma a atualidade e grandeza dos nossos desafios e afirma que “a sociedade sem manicômios é uma sociedade democrática, socialista e anticapitalista”.
A cada dia que passa, é explícita a conexão das lutas antimanicomiais com as demais lutas sociais. No que diz respeito à negritude, que sofre com a dura política de criminalização da sua vida e encarceramento em massa, a luta antimanicomial se conecta no reconhecimento do outro enquanto sujeito de direitos, indistintamente digno de respeito. Voltando ao passado, que infelizmente ainda se faz presente, a noção de drapetomania (criada para falar de escravos negros que tentavam fugir da escravização) foi amplamente difundida nos Estados Unidos. Há alguns anos, também nos Estados Unidos, ganhou debate na mídia um estudo que apontava a maior incidência de esquizofrenia em pessoas negras que em pessoas brancas. O racismo se manifesta na população negra produzindo sofrimentos profundos e em muitos momentos irreparáveis. Nesse espectro de discussão, também é importante o questionamento sobre o perfil racial e social predominante em manicômios e suas conexões com as prisões do século XXI.
As questões de gênero e saúde mental também são muito dramáticas. Nos primeiros manicômios, as mulheres encarceradas eram em sua maioria as que desviavam do padrão que lhes era imposto pela sociedade. As que não eram belas, recatadas e do lar, consideradas subversivas, eram trancafiadas nessas instituições como forma de punição. Muitos apontam inclusive que a destruição do clitóris para curar as tidas como loucas foi amplamente difundida na Inglaterra no início do século XIX, da mesma forma que a extração dos ovários foi difundida nos Estados Unidos anos depois. A população LGBT, que ainda sofre com processos de criminalização e patologização, historicamente foi muito violentada pelas instituições com lógica manicomial. Isso porque a sociedade extremamente preconceituosa encontrou nesses espaços ressonâncias para seus pensamentos de que identidades de gênero não cisgêneras e orientações sexuais não heterossexuais são doenças e precisam de intervenções psicológicas.
A análise dessas questões, que ainda são muito presentes nas nossas vidas, mostra que a lógica manicomial não só se fortalece com as opressões, mas dá sobrevida às grandes violências que sofremos, como o racismo e o patriarcado. Os processos de manicomialização são correspondentes a históricos processos de exclusão daqueles que são indesejáveis, daqueles que exercem sua liberdade, seu direito de ser quem é, sua autonomia, aqueles que questionam os padrões limitantes que nossa sociedade nos impõe. Enquanto houverem violências de gênero, raça e classe na nossa sociedade, o manicômio seguirá sendo factível, seja aquele tal qual existiu no passado, sejam atualizações dele em outras instituições.
Em 2020, no contexto da pandemia do coronavírus, muita coisa piorou. No dia 14 de Maio, a OMS alertou sobre uma possível crise global de saúde mental devido a pandemia uma vez que a experiência de medo, incerteza e isolamento social além da instabilidade econômica podem trazer sofrimento psicológico, assim a organização afirma que os governos necessitam colocar como prioridade a saúde mental dentro do âmbito social. Não podemos aceitar retrocessos tão fortes num momento como esse. É tempo de cuidado para todos e todas, de garantir a quarentena com dignidade, de construir os meios para que todos e todas possam se cuidar. Valorizamos as redes de solidariedade que tem operado no sentido de garantir doações aos CAPS, usuários, e profissionais de saúde, mas cobramos que o estado cumpra sua responsabilidade constitucional de garantir o acesso aos serviços de saúde, indistintamente.
São décadas de luta por um mundo sem manicômios e nós não descansaremos até fechar cada manicômio nessa sociedade. sejam os físicos ou os sociais e psicológicos. Seguimos fortes, unidos, diversos. E pensando, juntos, de quais formas podemos reconstruir a liberdade em tempos de pandemia.
Vida longa à luta antimanicomial!
Manicômio nunca mais!