A já antes desastrosa política de Bolsonaro para enfrentar o COVID-19 ganhou contornos de catástrofe anunciada na noite de terça, 24 de Março. Em seu pronunciamento, o presidente da República despejou um desfile de obscurantismo, negacionismo científico, superstição e desprezo pelas vidas dos idosos, de trabalhadores/trabalhadoras pobres do nosso país. Contrariando as orientações da Organização Mundial da Saúde e de seu próprio Ministério da Saúde, propôs o fim da quarentena e mais uma vez tratou o novo coronavírus como “histeria” e “uma gripezinha”. Sua proposta, dito abertamente, é de que tudo siga como se nada estivesse acontecendo — quer contar cadáveres para não “atrapalhar” a economia.
Bolsonaro tenta assim fazer coro a seus aliados da extrema-direita mundial. Enquanto isso, mesmo seus líderes são obrigados pela realidade a mudar de política. Boris Johnson, no Reino Unido, primeiro defendeu que a população adquirisse “naturalmente” a imunidade contra o vírus: que a maioria da população ficasse doente, sem maiores medidas públicas para contenção da pandemia. Com mais de 8.000 pessoas infectadas e 422 mortes até aqui, Johnson se viu obrigado a mudar de política e aceitar as recomendações da comunidade científica. Trump, por sua vez, alegou que o número de mortos seria maior com a paralisação das atividades econômicas do que com o vírus e teve que voltar atrás — os EUA se tornaram candidatos a epicentro da epidemia, com hoje mais de 59.000 pessoas infectadas e mais de 800 mortos pela doença. Na Índia, mesmo o ultra-reacionário Narendra Modi determinou o confinamento, a partir de ontem, de 1,3 bilhões de pessoas para conter a pandemia.
Nesse sentido, podemos considerar Bolsonaro o pior chefe de Estado do mundo no enfrentamento ao COVID-19. Ao subestimar a pandemia em rede nacional, Bolsonaro põe em risco a vida de todos brasileiros e brasileiras, as de nossas famílias e do conjunto da população. Coloca os lucros dos empresários à frente da vida do povo, em um país que já sofre com ausência de saneamento e insuficiência dos serviços públicos.
A irresponsabilidade de Bolsonaro em agir como líder de facção em um momento que o país precisava de um presidente, evidencia a tática que vem aplicando desde a campanha de 2018 e que o elegeu: a da construção de uma narrativa radicalizada com premissas próprias e um inimigo a ser derrotado, para dessa maneira coesionar a sua base fiel - e a partir dela disputar uma nova polarização política. Para isso, ele quer pagar o inimigo que não tem capacidade de derrotar - a pandemia e a crise econômica - para colocar o problema na mídia, na oposição e até em teorias conspiracionistas e xenofóbicas. Disposto inclusive a sacrificar membros do próprio governo, como o ministério da saúde e a relação com o congresso, o senado, o STF e os governadores estaduais -
aprofundando um cenário de crise institucional.
Impeachment sem movimento de massas?
Nos parece em certo sentido natural que, ao se colocar em debate o fim do governo Bolsonaro, se apresentem propostas de impeachment. Assim caíram os dois presidentes que foram derrubados na Nova República. No entanto, ambos processos foram apoiados em mobilizações de massas — dirigidas pela esquerda no Fora Collor, dirigidas pela direita golpista em 2016.
Sabemos que as disputas internas entre a direita tem se acirrado cada vez mais e foi daí que surgiu a primeira proposta de impeachment. Importantes setores burgueses tem demandado tanto um oportunista giro econômico — que o Estado intervenha para proteger seus lucros, deixando de lado a tão querida “mão invisível do mercado” —, quanto tem criticado cada vez mais duramente as políticas do presidente. Nesse sentido, o governador de São Paulo, o também reacionário João Dória, tem se colocado como oposição e alternativa burguesa a Bolsonaro. É nossa tarefa incidir sobre as contradições entre os de cima, mas não podemos nos equivocar em achar que para dirigir um processo basta disputar a assinatura de um movimento institucional. Se o primeiro impeachment tivesse sido protocolado pela esquerda e não pela direita, significaria necessariamente o produto de uma virada na correlação de forças? Infelizmente não.
Temos, do ponto de vista da organização popular, uma situação inédita. Não podemos e nem devemos ir às ruas: é necessário evitar grandes aglomerações para conter o contágio do COVID-19. E pouco a pouco, vamos reinventando as formas de luta, enquanto Bolsonaro vem se isolando — há panelaços diários em diversas cidades do país, inclusive nas periferias das grandes cidades. Trabalhadores e trabalhadoras têm cada vez mais entendido que Bolsonaro, além de preferir que nossas pessoas queridas morram a diminuir os lucros dos patrões, é incapaz de articular uma frase completa quando o assunto é saúde pública.
É nesse cenário que se está debatendo a possibilidade de um impeachment. No entanto, os projetos de impeachment até hoje existentes não tem maioria institucional para serem vitoriosos, nem representam movimentações unitárias das forças progressistas do país. A Câmara e o Senado estão funcionando remotamente em caráter extraordinário, com dificuldades inclusive para votar as medidas emergenciais urgentes de auxílio aos desempregados, aos trabalhadores de baixa renda, etc. A esquerda tem que ser a primeira defensora dessa agenda emergencial, que vai garantir o direito à vida de mais de 104 milhões de brasileiros que vivem com uma renda per capita familiar de R$412,00.
Não podemos queimar a largada, de modo semelhante ao que aconteceu com o processo de impeachment contra Trump recentemente, aberto pelo Partido Democrata para desgastar a figura do presidente mesmo com minoria no Senado e que acabou gerando o efeito contrário: Trump usou o processo para se vitimizar e saiu fortalecido.
Mas mais do que isso, fazemos o alerta: impeachment sem participação das massas pode enveredar pelo substitucionismo, com a forma jurídica querendo ocupar o lugar das massas na ação política, na luta de classes e no desenvolvimento histórico. A esquerda já pagou muito caro por erros desse tipo. Sem a pressão do movimento de massas para derrubar o governo, qualquer pedido de impeachment tem tanto conteúdo de classe quanto o pedido de Alexandre Frota, e terá como resultado um governo Mourão, em que as Forças Armadas liderariam uma unidade nacional contra o vírus. Melhor que as milhares de vidas perdidas e a catástrofe anunciada que é o governo Bolsonaro? Sem dúvidas. Mas será esse o horizonte da esquerda anticapitalista?
PARAR TUDO em defesa da vida e pelo Fora Bolsonaro!
Ao contrário, acreditamos que a queda de Bolsonaro precisa ser produto de mobilizações populares, em um país com mais de 200 milhões de habitantes, em oposição ao projeto genocida, criminoso e irresponsável do governo federal. Com esse elemento, sim, um impeachment poderá ser vitorioso e impor uma relação de forças favorável aos trabalhadores do país e de toda a América Latina.
E para sermos capazes de acumular forças, precisamos garantir o direito a quarentena e a proteção de todos os trabalhadores e trabalhadoras, do centro às periferias urbanas, o mais rápido possível.
Em todos os países que os governantes tentaram resistir em um primeiro momento, surgiram greves de trabalhadores que conquistaram o direito a se proteger em casa, o direito a acessar uma renda extra de quarentena, ou negociações sobre condições trabalhistas em setores essenciais - incluindo grandes empresas internacionais como a Amazon.
Enquanto Bolsonaro, Crivella e setores do empresariado defendem a “volta à normalidade”, desprezando nossas vidas para defender seus lucros, é urgente que os movimentos sociais, sindicatos, partidos e entidades façam a defesa intransigente do povo, de quem trabalha e verdadeiramente sustenta esse país. Nós do RUA dialogaremos com nossos movimentos parceiros, e defenderemos em todos os fóruns de que participamos a convocação unitária pelas Frentes Povo Sem Medo e Brasil Popular da paralisação geral de todas as atividades não relacionadas ao combate contra o COVID-19 e pelo Fora Bolsonaro. Diversos sindicatos e entidades têm feito essa defesa em suas bases. A vida do povo precisa vir em primeiro lugar! E se Bolsonaro não aceitar a vontade do povo, que caia o governo!
É preciso, ainda, que as frentes, partidos e movimentos apresentem um programa unitário em defesa da vida, dos empregos e da renda dos e das trabalhadoras. Como contribuição ao debate, e sem a expectativa de ser um programa já fechado e completo, apresentamos as seguintes reivindicações para o conjunto do movimento:
- Paralisação geral de todas as atividades não-essenciais no combate ao COVID-19, pelo Fora Bolsonaro;
- Conversão de unidades produtivas aptas em produção de equipamentos médicos e de prevenção ao COVID-19;
- Adoção de testes em massa para combate à epidemia e distribuição gratuita de EPIs para trabalhadores nas atividades essenciais;
- Proibição de demissões e suspensões de contrato enquanto durar a pandemia;
- Suspensão da cobrança de todas as contas (de aluguel, luz, água, gás) até o fim da pandemia;
- Proibição de despejos e cortes de luz e água durante a crise do COVID-19;
- Auxílio financeiro mensal a todos trabalhadores informais, respondendo a sua renda média, até o fim da pandemia;
- Taxação das grandes fortunas e injeção do arrecadado (previsto em R$272 bilhões) no combate ao COVID-19;
- Revogação imediata da EC95: por investimentos massivos e urgentes em pesquisa e no SUS; contratação urgente de profissionais de saúde para o SUS;
- Adaptação de hotéis e imóveis inutilizados para acolhimento de doentes, pessoas em situação de rua e vítimas de violência doméstica;
Proteger o povo, não os lucros!