Vivemos nesse momento uma crise sistêmica, de modo tão rápido todo mundo parou de modo inimaginável. Afinal quem de nós diria no começo de 2020 que estaríamos vivenciando um problema de proporções mundiais que não se refere apenas a saúde, vale ressaltar. O que vivemos nesse momento é algo para além da saúde, ela não apenas envolve outras esferas do mundo contemporâneo que por certo afirmamos serem separadas como alimentação, turismo, economia, cultura, consumo, política, religião. A crise do Covid-19 não afeta esses outros setores para além do espectro da saúde, essa crise é resultado e, portanto, consequência de como a humanidade está gerindo e vivenciando o mundo moderno. Explicar isso, não significa exagerar ou forçar a barra de que nós anticapitalistas usamos qualquer crise para culpar esse sistema, como marxistas mais ortodoxos tendem a dizer que o ponto central de tudo é a economia. O momento atual nos mostra que não é, afinal as respostas dadas à crise não se resumem ao espectro econômico, é a economia que afeta e causa, em modo retroalimentar essa crise, mas não como ponto de partida, como ponto central, a economia está afetando e sendo afetada de modo equivalente ao ecossistema.
Não temos pretensão de negar em qualquer momento a espectro econômico do sistema em que vivemos, mas a certeza de que essa não é a única perspectiva em questão nessa crise em que vivemos. Os debates econômico e ambiental não devem ser separados e cabe a nós juventude anticapitalista ter o discernimento e coragem para reafirmar isso. As respostas para as crises não são ditas em debates da esquerda tradicional, as saídas estão naquela esquerda que se propõe a enfrentar, seriamente, o debate ambiental tanto quanto o trabalhista, compreendendo que o campo e a cidade devem coexistir para a segurança alimentar e que nosso modelo predatório e exploratório significa nosso fim e que os saberes tradicionais indígenas são tão importantes e relevantes quanto de autores europeus consagrados por suas formulações teóricas e revolucionárias.
A lógica capitalista de desenvolvimento acelerado e constante é um dos principais argumentos defensivos desse sistema totalizador. Nesse contexto, o corona-vírus serviu como estopim de uma crise que já estava sendo fermentada seja na exploração energética com as altas disseminações de gases poluentes, seja no avanço da destruição de ecossistemas em prol dos modos de produção exacerbados ou no processo de colapso ambiental e animal. É inquestionável que a crise ambiental a qual atinge os mares e oceanos, que são responsáveis pela manutenção metabólica na Terra, reflete nas mais diversas mutações e modificações biológicas dos microorganismos. Nota-se que a atual crise é fruto do cruel modo de viver capitalista: alto adensamento populacional em grandes cidades, sem circulação de ar adequado e precária infraestrutura de saneamento básico. Os wet markets, mercados em que são vendidos carne fresca, muitas vezes envolvendo animais exóticos e em extinção, escancaram a crueldade humana do especismo que não só nos colocam em vulnerabilidade como todas as outras espécies, colocando em contato uma série de animais em condições insalubres, com exposição uns aos outros de sangue, pus e excretos, permitindo a circulação de vírus entre animais que provavelmente jamais se encontrariam. Engana-se quem acha que isso é uma questão da China ou dos pobres, os compradores das carnes exóticas são os mais ricos e aqui na cultura ocidental não é diferente, jacaré, tatu, sopa de tartaruga, capivara e tantos frutos do mar exóticos vão para os pratos dos ricos e poderosos para ser apreciados como uma iguaria.
É inegável que a globalização, o produtivismo descontrolado e o fluxo migratório são reflexos de um projeto de sociedade excludente e catastrófico, ademais esses pontos são desencadeadores de crises, surtos e pandemias como pode-se observar ao longo da história contemporânea. Sobretudo, nota-se que o capitalismo gera epidemias derivadas da falta de amparo social que esse sistema é incapaz de promover como o acesso à saúde universal, ao saneamento,
alimentação e condições de moradia adequada, por esse motivo quando há crises, são os indivíduos os quais estão à margem desses problemas que pagam uma conta que não fizeram, mas sim as grandes corporações do mercado financeiro. Nessa perspectiva, vale ressaltar que o negacionismo climático faz parte do projeto comum do capitalismo, uma vez que gera uma ‘’necropolítica’’, a qual atinge, especialmente, o Sul global (parte periférica do mundo) onde analisa-se a destruição material dos corpos julgados como descartáveis, tendo em vista que tais indivíduos são revelados pelo o que Karl Marx chamava de ‘’trabalho morto’’ que representa o avanço das máquinas sobre os sujeitos que são expropriados do trabalho e, portanto, do consumo, sendo considerados ineficientes à produção e ao mundo o qual se baseia na lógica de trabalhar para consumir. Caso o indivíduo não se encaixe nessa convicção, o sistema tende a excluí-lo e torná-lo como ‘’impessoais’’ dentro do conceito de Noam Chomsky.
Por esse viés, sabe-se que a da produção capitalista é linear porque após o consumo não há outro ciclo a se realizar, levando os bens produzidos a serem descartados de maneira inadequada, resultando em acúmulo orgânico, no meio ambiente, com consequências aos habitats naturais de diversas espécies, inclusive ao nosso. Logo, é nesse cenário que encontra- se o surgimento das mutações dos organismos, tendo em vista que ao contrário da visão do capital, a natureza não é linear, mas sim cíclica, tendo em consideração uma visão biológica das cadeias alimentares das espécies não humanas, pois na natureza nada se perde e tudo se transforma, mas se há por um lado o sistema capitalista que só funciona com o crescimento produtivista, por outro há o fato das riquezas naturais serem limitadas e mesmo assim são consideradas necessárias para garantir tal crescimento e a conta disso não fecha. É necessário que imaginemos um processo de decrescimento e desglobalização do mundo contemporâneo como solução única para essa situação. Portanto, se as mudanças climáticas não originassem todo esse conflito sistêmico, o desencadeamento de pandemias teria grande possibilidade de não existir ou ter menores agravamentos sociais. No entanto, a realidade é que há o avanço do colapso climático que afeta diretamente de forma mais cruel os 99% da população, a qual é pobre comparada aos 1% que concentra toda riqueza material do mundo e têm as condições necessárias para tratamentos de saúde em tempos de crises biológicas, ao contrário da maioria que vive com alta desigualdade econômica.
Desse modo, há muitas pesquisas que indicam as regiões mais vulneráveis como as mais atingidas pelas crises climáticas nesse momento e em futuro próximo, a exemplo da região Nordeste, no Brasil, onde há alta densidade demográfica e baixo índice de desenvolvimento humano (IDH). Essa percepção enquadra-se no conceito de racismo ambiental que devemos nos atentar. Na sequência, pode-se dizer que o corona-vírus vem atingindo toda classe social, porém é a classe trabalhadora (a mesma que está frente ao caos climático) que tende a não ter chances de sobreviver em pandemias como esta, visto que o alimento só chega na mesa se o trabalho continuar no dia-a-dia e o acesso ao sistema de saúde na prática tem seus déficits de atendimento a grande massa, no mesmo momento. Dessa forma, tendo em vista que o corona-vírus cresce exponencialmente, deve-se considerar que a crise climática também segue esse ritmo, entretanto a diferença é que a pandemia pode passar em alguns meses e nesse período mesmo que a demanda energética tenha uma redução e a Terra tenha menores disseminações de gases poluente e pouca produção que destrói a natureza, sabe-se que de nada adianta porque é um fato momentâneo e logo após todo o caos voltará ao que o capitalismo nos ensina a enxergarmos como normal. É preciso mudar esse retorno, não aceitar esses moldes e propor uma transição.
Conforme a realidade expressa uma necessidade urgente de mudanças no estilo de vida em toda comunidade internacional, os interesses capitalistas voltados ao imperialismo norte-americano e uma disputa da hegemonia internacional tende a aproveitar das crises para ocasionar a guerra ideológica contra seus opositores de mercado, como em outros momentos das crises globais que vivemos. Nesse sentido, o atual governo de Donald Trump demonstra uma intensificação nas tensões, apesar de ser um momento de desespero social e dor que abrange todos os continentes. Trump fez uma grave insinuação de responsabilidade à China sobre a criação do vírus, ainda que toda comunidade científica tenha afirmado não ter evidências que comprovem tal teoria. Dentro da globalização o que se pode observar é a mesma briga de interesses que nada se diz respeito ao povo e só agrava a destruição do que Michael Löwy considera de ‘’casa comum’’ que é a nossa Mãe Terra. Duas potências globais, de um modelo de desenvolvimento exploratório e destrutivo competem pela hegemonia global, de um lado o maior mercado consumidor do mundo, os EUA e de outro o sistema chinês que graus inimagináveis de destruição de ecossistemas e que “salva” a aceleração do desenvolvimento capitalista mundial.
Não teremos futuras gerações humanas enquanto não houver um entendimento de que fazemos parte do metabolismo da natureza, o que Marx definia como parte de um sistema onde a agricultura (o que podemos compreender como meio ambiente) e a sociedade está, totalmente, interligada na forma de subsistência. Sobretudo, somos sujeitos ativos dentro desse metabolismo, não estamos fora de qualquer fato que se diz respeito ao caos climático que o capitalismo proporciona. Logo, é necessário pensar nos efeitos que o corona-vírus deixará além dos aspectos da saúde e das lamentáveis mortes, mas também quais serão nossas futuras ações frente aos próximos dias, pois se a preocupação com toda essa crise humanitária for momentânea, estaremos vulneráveis a outras pandemias.
O futuro, não distante e sim imediato, pede coragem para enfrentar essa realidade de maneira coletiva, o que vivemos expõe nossa necessidade de coletividade, de ajuda mútua. Apesar de estarmos isolados em casa, agimos para uma ajuda coletiva, pelo bem comum e pelo bem viver, nunca precisamos tanto de nós mesmos confiando nos que nos cercam. É preciso coragem para transitar, mudar, almejar visando a luta pelo ecossocialismo, em que nós anticapitalistas sejamos parte de uma cosmovisão de um coexistir e não de um pretenso protagonismo iluminado. É preciso que haja o necessário equilíbrio ecológico para que a vida valha mais que o lucro e que o combate às opressões esteja ligado também contra à exploração e destruição do planeta e de nós mesmo. Assim, com a transformação partindo na raiz dos problemas sem reformas efêmeras, devemos colher uma sociedade do bem viver onde será possível enfrentar ou deixar de existir pandemias causadas pelo acúmulo de anulação da natureza. Cabe a nós construirmos o mundo que queremos mudando o sistema e não o clima, nesse momento mais do que nunca é preciso construir pontes para uma transição do sistema, não uma transição do sistema econômico que atue apenas nas elucidações de classe, mas uma revolução sócio-ambientalmente justa e classista, que mude nosso eixo de ver o mundo e viver.
Kamila Erika, militante do RUA - BA e Estudante de Farmácia/ UNIVASF
Well Leal, militante ecossocialista e do RUA - RR, mestre em sociologia pela UFPE
Felipe Muniz, militante ecossocialista e do RUA - RJ, Estudante de Eng. Naval/UFRJ