Por: Caíque Azael, Iamara Peccin, Jordana Almeida e Thaíse Albino, militantes do RUA - RJ
Há quem diga que em momentos de uma epidemia global se rompem as separações. Ricos e pobres, centro e periferia. Será que o fim do modelo individualista acentuado pelo liberalismo viria por globalização igualitária das consequências desse momento? Com certeza veremos mudanças no nosso modo de vida pós Coronavírus, mas com certeza não será porque as consequências dele serão sofrida igualmente por todos. Desde o início do mês de março, acompanhamos com muita preocupação o avanço do coronavírus no Brasil. A preocupação, que inicialmente, partia do acompanhamento do vírus em outros países, ganhou outra dimensão considerando-se a realidade do nosso país, onde mais de 11 milhões de pessoas vivem em favelas, muitas delas sem a menor condição de saneamento básico, abastecimento de água, coleta de lixo regular… Como apresentam Sonia Fleury e Paulo Buss (2020), ainda que o vírus não tenha distinção de raça ou classe para contaminar, serão as condições sociais e sanitárias determinantes para dizer quem estará em melhores condições de vida (e com acesso aos serviços de saúde) e quem estará destinado a morrer.
O questionamento sobre as condições para efetivar as orientações também é presente nas reivindicações: como a gente pode lavar as mãos se em muitas favelas mal tem abastecimento de água? Como comprar álcool em gel sem dinheiro? Como isolar as pessoas com sintomas de Coronavírus se 300 mil casas hoje no Rio de Janeiro abrigam mais de três pessoas em um cômodo[1]? Quais são as medidas implementadas para a população em situação de rua no nosso país? Fica evidente que não caíram as separações, ou melhor, os grandes abismos, pelo contrário, pobres e em sua maioria negras e negros nas favelas desse estado mostram por "a +b" que não há espaço para humanidade dentro de um sistema desumano.
Muitas perguntas ainda não foram respondidas pelo poder público e pelos pesquisadores sobre a realidade desses territórios, o que prolonga a indefinição e a tensão dos moradores. Ao mesmo tempo, há os irresponsáveis e criminosos - como Crivella e Bolsonaro - que defendem em muitos momentos que é possível voltar à normalidade e que o vírus não pode parar o Brasil. Um mês depois dos primeiros contágios em nosso país, não há definição ainda de um destinamento maior de recursos de saúde às favelas, ainda que esteja escancarado que as condições de aglomeração, sanitárias e de renda colocam essas pessoas em maior situação de vulnerabilidade. Não há universalismo que esconda a disparidade de tratamento dado aos moradores de favela, lembrando que nosso conceito de igualdade parte de "tratar igualmente os iguais e desigualmente os desiguais, na exata medida de suas desigualdades”.
Não há definição sobre como fica o sustento de tantas famílias. Ainda que o PL da Renda Emergencial esteja em tramitação no Congresso Nacional, seu alcance ainda é limitado e não sabemos quanto tempo demorará para que as famílias tenham de fato acesso ao recurso. Muitas famílias estão dependendo das redes de solidariedade para se alimentar e ter acesso ao mínimo de higiene pessoal. Além disso, são essas famílias as principais dependentes do SUS, cujos recursos já foram reduzidos em cerca de R$ 20 bilhões apenas em 2019 devido à Emenda Constitucional do Teto de Gastos. O coronavírus coloca em um novo patamar a realidade desigual do nosso país. Nem diante de uma pandemia que já vitimou 30 mil pessoas no mundo, Bolsonaro lida com responsabilidade e dá a devida atenção àqueles que vivem em estados de completa vulnerabilidade. O presidente afirma, inclusive, que o brasileiro não vai pegar coronavírus porque está habituado a pular em água de esgoto, nadar em valão e não acontecer nada. A mediocridade, com requintes de crueldade, faz piada da triste realidade dos brasileiros que não possuem em seus bairros saneamento básico e são obrigados a conviver com isso.
É claro que chamamos a necessidade de empatia e compaixão, mas só isso não é o bastante, precisamos urgentemente de políticas públicas que amenizem o descaso secular das áreas de favelas no Brasil. As barreiras sociais mostram que a pobreza e a desigualdade são vírus mais antigos (com perdão da patologização) que se alastraram de tal forma que em meio a uma pandemia, milhões de pessoas não podem corresponder a orientações simples de medidas de higiene pessoal e isolamento, porque a esses não é garantido a condição mínima de pagar por água, sabão, teto.
A proposta apresentada pelo governo de auxílio às famílias mais pobres era de 200 reais por mês, valor que mal cobre os custos da cesta básica para uma família. A partir da formulação dos movimentos sociais, moradores de favelas e coletivos locais, alguns parlamentares têm desenvolvido um trabalho importante para assegurar que essa parcela da população tenha o mínimo de dignidade nesse período e consiga, efetivamente, ficar de quarentena. Na contramão do governo federal, propostas como uma Renda Emergencial de pelo menos um salário mínimo e duração mínima de 6 meses, o congelamento das contas de água e luz, o controle do preço do gás e o fortalecimento das políticas de comunicação comunitária tem sido apresentadas em diferentes modalidades pelo Brasil. Se compreendemos que a principal dificuldade para a garantia da quarentena é a viabilização das condições materiais para isso, precisamos costurar meios de viabilizar tais condições. Não dá para mudar uma história de descaso com os favelados em alguns meses, mas podemos ter medidas que diminuam o impacto da pandemia na vida dessas pessoas.
Quando nossas reivindicações são de "garantia de direitos trabalhistas" a favela nos escancara a realidade de uma maioria de desempregados e trabalhadores informais, apenas 19% dos moradores de favela possuem contrato formal de trabalho. Num país que alcançou 41% de informalidade, não podemos considerá-los exceções e nem a favela enquanto um território de soluções secundárias, são urgentes! Falamos da realidade de um país onde a renda per capita de metade da população gira em torno de R$ 400,00. Por aqui, 70% das famílias das favelas já perceberam a diminuição brusca da sua renda mensal. Não dá para fazer um debate econômico que se sobrepõe a um debate de vida. Quase 86% dos moradores de favelas terão dificuldades em se alimentar caso a quarentena se perdure. Por isso nossa reivindicação nesse momento é da vida urgente: de água para beber e cozinhar, de comida na mesa para alimentar, de sabão para lavar a mão, de moradia para dormir, condições básicas de vida frente a uma pandemia que dizimou milhares.
Uma grande preocupação nesse momento é que, caso a população não fique em casa como é orientado pelas autoridades, as medidas de contenção sejam mais militarizadas ainda. Nas favelas do Rio de Janeiro, a população negra convive com tal realidade há anos e os resultados cotidianos são a expansão do encarceramento e do genocídio dos jovens pretos. Por aqui, a polícia militar está presente em estações de metrô - apenas na periferia - para impedir que pessoas acessem o transporte (só trabalhadores das áreas consideradas essenciais estão liberados). A expansão dessa lógica e utilização das forças repressivas do estado para contenção dos moradores em sua casas pode ter efeitos mais letais que apenas o contágio pelo coronavírus.
Nós por nós: em toda favela há uma chama de solidariedade e esperança
Um mês se passou desde os primeiros casos confirmados no país e nenhuma medida efetiva de política pública foi implementada nos territórios de favelas. Se por um lado, o Governo Federal e o Prefeito do Rio de Janeiro ignoram a seriedade da situação e preferem não trabalhar na criação de condições para o enfrentamento ao COVID-19, por outro lado exploramos a brecha nos dada na institucionalidade. A proposta da renda básica apresentada na Câmara pela bancada do PSOL e sancionada hoje no Senado é uma medida central para que a população passe por esse momento com um pouco mais de dignidade. Agora precisamos pressionar o presidente pelo pagamento urgente dos valores! #PagaLogoBolsonaro! Outra importante medida foi a proposta de Lei da Deputada Estadual Dani Monteiro que prevê a garantia de bolsa-auxílio na quarentena para famílias responsáveis por estudantes da Rede Pública de ensino até o retorno das aulas. Talvez a iniciativa mais importante do período seja a articulação da bancada nacional, estadual do Rio de Janeiro e municipal do Rio do Projeto de Lei das favelas, iniciativa essa que devemos agitar com os demais movimentos de defesa das favelas em tempos de COVID-19. Entretanto, precisamos de mais: Precisamos de responsabilidade do executivo federal, precisamos de ações de solidariedade, precisamos de endividamento público para equipar o SUS. Precisamos de um engajamento geral e o abandono de uma perspectiva individualista.
Acompanhamos as mobilizações em tantos territórios que têm mostrado que é possível garantir que as pessoas fiquem em casa: basta dar a elas condições e informações para isso. No Rio de Janeiro, não são poucas as ações que caminham nesse sentido. Os moradores de favelas e periferias tem desenvolvido, a partir da comunicação comunitária e fortalecimento das redes de solidariedade direta no território, importantes campanhas de informação, arrecadação de produtos de higiene pessoal e alimentação. Ainda que com poucos recursos e tempo, essas campanhas têm produzido um deslocamento no senso comum em vários territórios de que a doença não afeta apenas os mais ricos, pelo contrário: dada a vulnerabilização histórica de certos territórios, os mais pobres serão definitivamente os mais prejudicados. O Coletivo Papo Reto (que atua no Complexo do Alemão - RJ) apresentou que a falta de informações acessível e factual aos moradores de favelas e periferias tem causado prejuízo às ações de combate e prevenção ao vírus. O que tem surtido bons efeitos são as estratégias organizadas pelos moradores, para os moradores. Um exemplo interessante é o que a ativista Mônica Cunha revelou em recente entrevista ao jornal O Dia: pelo whatsapp, ela tem dado orientações frequentes aos moradores de favelas, desde questões de higienização até a importância da quarentena para lidar com o Coronavírus. Na Maré, são 16 favelas onde moram quase 140 mil pessoas. O fim de tarde é mais deserto em algumas ruas e becos das favelas, desde o início das medidas de isolamento. Embora ainda não haja casos confirmados por lá, há uma preocupação grande e muita mobilização para levar informação sobre o vírus à população. Coletivos de comunicadores populares organizaram campanhas de arrecadação e há carros de som passando pela favela, bem como faixas e cartazes sobre o vírus. Na Cidade de Deus, nossos parceiros do Marginal, em conjunto com o Movimento de Educação Popular +Nós tem conduzido uma importante ação de solidariedade direta às famílias mais pobres, com distribuição de água potável e itens de higiene pessoal. Muitas famílias foram contempladas numa ação que já arrecadou dinheiro para comprar água mineral, ítens de higiene pessoal e coletivo e afins. Em Caxias, na baixada fluminense, o coletivo Movimenta-Caxias buscam doações e fazem ações de solidariedade em um dos municípios mais afetados pela pobreza e pela extrema violência. No campo da cultura, as apresentações gratuitas nas plataformas digitais são uma forma interessante de entretenimento popular. Dia desses, o funk do coronavírus, do MC Tchelinho do Heavy Baile, ganhou as graças da juventude ao alertar sobre contágio, cuidados, contaminação e isolamento. Artistas que ganham seu sustento a partir das apresentações nas ruas da cidade e nos transportes públicos se uniram numa campanha de arrecadação online.
Em resumo: há muitas campanhas e iniciativas das favelas e para as favelas. Dos trabalhadores precarizados, das igrejas, dos coletivos… Assim, dia após dia, fica provado que uma das saídas mais potentes para essa crise e qualquer outro problema que a gente compartilhar começa no cuidado, na solidariedade, no reconhecimento do outro como pessoa de direito.
Quarentena não é privilégio, é direito!
No momento onde muitas pessoas dizem que quarentena é privilégio, nós reafirmamos que quarentena deve ser direito de todos - moradores do asfalto, das favelas, jovens, pretos, idosos, mães e pais chefes de família, trabalhadores informais… Ainda assim, hoje muitos patrões não liberaram seus funcionários os retrocessos do mundo do trabalho dão menor proteção aos trabalhadores e os governantes não tem sido enérgicos. Precisamos cada vez mais incidir nessa disputa para garantir o direito ao maior número de pessoas possíveis.
As recomendações globais dos órgãos de saúde dão importantes diretrizes para a contenção da pandemia, mas cabe aos governos a viabilização de tais orientações para a população, compreendendo a desigualdade que divide a população no nosso país. Da forma que tem sido implementada no Brasil, as orientações ainda não dão conta da realidade de milhares de famílias que vivem com pouco ou nenhum dinheiro, bem como das famílias que não conseguem organizar o orçamento para lidar com crianças sem aula (e, portanto, sem a refeição diária fornecida pelas escolas) ou estocar comida para 15, 20 dias, já que o dinheiro de tantos trabalhadores é fruto de bicos e trabalhos informais. São milhares de pessoas que se sustentam a partir dos trabalhos por aplicativo (Uber, Rappi, Ifood e similares). É um desafio manter em casa o maior número de pessoas possíveis, dando condições para isso ao mesmo tempo que defendemos as bandeiras políticas históricas dos trabalhadores e trabalhadoras para uma vida digna. Mais que nunca, a defesa da renda básica, valorização do SUS e fim do teto de gastos são demandas pela vida dos moradores de favelas.
Que a gente lembre desse momento por muito tempo. As dificuldades têm lembrado quem de fato é parceiro e quem só aparece nas favelas em época de eleição ou dando tiro do alto dos helicópteros blindados na juventude preta e pobre das nossas favelas.
Ajude as favelas a passar pelo Coronavírus: contribua nas ações de solidariedade, se você puder, evite ao máximo sair de casa e divulgue informações corretas sobre o corona com os seus.
A favela pegou a visão: não tem futuro sem partilha, nem Messias de arma na mão. Façamos nós por nós!
Referências:
Borges, T. 2020. Coronavírus e as quebradas: 16 perguntas ainda sem respostas sobre o impacto da pandemia nas periferias. Blog periferia em movimento. Disponível em: <http://periferiaemmovimento.com.br/coronavirus-e-as-quebradas-16-perguntas-ainda-sem-resposta-sobre-impacto-da-pandemia-nas-periferias/?fbclid=IwAR0FZjK3ALDl0sdmlBvSYFLW5QzIW5PQl8Md7-WzhggsNY7yHMpbz0pXjWI>. Acesso em 27 de março de 2020.
Fleury, S., Buss, P. (2020). Periferias e Pandemia: Plano de emergência, já! Blog Outras Palavras. Disponível em: <https://outraspalavras.net/cidadesemtranse/periferias-e-pandemia-plano-de-emergencia-ja/> Acesso em 27 de março de 2020.
Goulart, Fransérgio. (Fransérgio Goulart Goulart). Publicação na rede social facebook. Rio de Janeiro, 13 de março de 2020, 07h24min. Disponível em: <https://web.facebook.com/fransergiogoulart/posts/10157972250629801>. Acesso em 27 de março de 2020.
RioOnWatch, 2020. Seis realidades do Coronavírus e as favelas: da falta de informação à falta de Água. #OQueDizemAsRedes. Blog RioOnWatch. Disponível em: <https://rioonwatch.org.br/?p=45905>. Acesso em 27 de março de 2020.
Santiago, Raull. (@raullsantiago). “Oi galera , pega essa visão aqui diretamente do Complexo do Alemão. #COVID19NasFavelas #covid19”. 17 de março de 2020, 12h58min. Disponível em: <https://twitter.com/raullsantiago/status/1239944159240376321>. Acesso em 27 de março de 2020.
Schmidt, L. (2020). Pesquisa mapeia mais de 300 mil casas no Rj onde mais de três pessoas dormem no mesmo cômodo. Portal G1 notícias. Disponível em: <https://g1.globo.com/rj/rio-de-janeiro/noticia/2020/03/24/pesquisa-mapeia-mais-de-300-mil-casas-no-rj-onde-mais-de-tres-pessoas-dormem-no-mesmo-comodo.ghtml>. Acesso em 27 de março de 2020.
[1] Segundo estudo da Ong Casa Fluminense (G1, 2020), 14% das casas de Japeri, na Baixada Fluminense são assim. No caso da cidade do Rio de Janeiro, a favela do Jacarezinho é onde há o maior número de pessoas por casa e o isolamento se torna inviável.