22 de agosto de 2023. Helena Cunha entrevista Valentino Franzini, militante do Poder Popular/ARG. Introdução e revisão por Daniel Lopes.
Assistimos, no último dia 14 de agosto, Javier Milei levar mais de 30% dos votos apurados nas primárias argentinas. Nosso país vizinho, que enfrenta grave crise econômica com governo de centro-esquerda eleito em um cenário incerto - com a chapa Fernandez-Kirchner, após os anos de governo liberal de Macri, agora se vê num cenário que assistimos também por aqui: o ascenso da extrema-direita.
Apesar de não significar grandes certezas, as primárias são o “primeiro tempo” das eleições por lá, e, certamente, são o pontapé dos resultados finais.
Milei é uma das representações mais nítidas da caricata figura `outsider`. Se diz libertário, no país, ressoa o tal “anarquista de mercado/anarcocapitalista”, o de fora. Tal despolitização ganha forma e força com o falso combate à corrupção. Em 2021, foi eleito deputado federal, ganhando destaque nas ofensas direcionadas ao kirchnerismo e ao Juntos por el Cambio e pouco declarou suas intenções para além da destruição dos direitos sociais, redução do estado e dolarização da economia.
Se temos como fato que a conjuntura mundial influencia nosso país, como na comparação inevitável de Trump e Bolsonaro, sabemos da influência ainda maior das lutas na América Latina e Caribe. Nessa toada, convidamos nosso companheiro Valentino Franzini, militante da juventude do Poder Popular, organização da esquerda anticapitalista argentina, para dividir as experiências e as lutas que estão acontecendo neste momento para barrar o ascenso de Milei ao poder.
Valentino tem 22 anos e vive na Cidade Autônoma de Buenos Aires. Constrói o Espacio Belgrano, centro cultural impulsado por Poder Popular em colaboração com uma cooperativa de artistas. A troca de experiências das lutas e dos desafios é fundamental para fortalecer nossa luta internacionalista. Acompanhe.
Nota: em diversos pontos do texto, você acompanha as siglas e nomes das organizações argentinas, há um glossário no final do texto com todas elas.
RUA: Quando vimos os resultados das PASO aqui no Brasil, por um lado isso nos surpreendeu um pouco porque ainda nao tinhamos visto o crescimento da extrema-direita na Argentina, mas por outro, também nos lembrou muito as eleições de 2018 no Brasil, quando Bolsonaro teve um crescimento que foi inesperado por parte significativa das forças políticas. Como você interpreta o resultado das PASO?
Valentino Franzini: Bom, aqui o resultado também surpreendeu tanto a esquerda quanto a direita. Foi surpreendente porque Milei não tem um partido político orgânico, não tem militância, menos ainda nas províncias, que foi onde ele teve mais votos.
Em 2019, nós caracterizávamos que uma vitória do Macri seria uma derrota da qual seria difícil se recuperar. Não tanto porque ele ia aplicar seu programa anterior, mas porque estava se preparando para aprofundar a taxa de exploração sobre a classe trabalhadora. O seu programa foi caracterizado por tentar aumentar os recursos da burguesia por meio da aplicação de uma tripla reforma: trabalhista, da previdência - que foi aplicada apenas parcialmente, porque houve muita resistência popular - e tributária. Nós entendemos que um segundo mandato dele poderia significar um aprofundamento dessas reformas e por isso entendíamos que o voto em Alberto Fernandez era uma forma de frear esse perigo.
Efetivamente, a eleição de Fernandez não significou um retrocesso em relação a estruturação do trabalho, pelo menos não em termos do que vinha acontecendo com o macrismo. Mas o que se verificou foi um aprofundamento das políticas neoliberais do macrismo. A cada ano, o orçamento da educação e dos programas sociais foi diminuindo, enquanto a inflação acumulada de 120% no ano foi corroendo os salários. Então de nenhuma forma houve uma ruptura com o modelo de neoliberalismo que vinha sendo aplicado antes. O crescimento econômico registrado durante o governo de Fernandez deu origem a novos empregos, que são em sua maioria não registrados e com salários muito baixos. Com as reformas liberais motivadas pelo acordo com o FMI, chegamos em uma situação em que as pessoas que trabalham passam a ter menos direitos. Tecnicamente, cresceu a quantidade de trabalhadores que ganham menos de um salário mínimo, que estão abaixo da linha da pobreza e que têm menos direitos. São as mesmas condições da época do Macri.
Hoje um trabalhador argentino se pergunta: o que ganhamos com a vitória do Alberto Fernandez? Ele começa a ver que as políticas de preservação do capital seguem sendo aplicadas em um governo de caráter popular. Então como não há muita diferença entre o programa do peronismo e o programa do Macri, abre-se a possibilidade de radicalização pela direita ou pela esquerda. Em vez de se radicalizar pela esquerda, Massa se parece muito com a direita, inclusive recebe apoio da burguesia.
Já sabíamos que estas seriam as eleições com a menor mobilização desde 2015, que alcançou quase 80% de participação eleitoral. Mas os resultados das PASO também demonstraram que as condições materiais dos partidos políticos mais consolidados não são suficientes para garantir o jogo eleitoral. A capilaridade de um partido político condiz com a sua capacidade de chegar à classe trabalhadora. E nessas eleições, Milei vem conseguindo medianamente estar um passo à frente nessa capacidade de falar com as pessoas, principalmente por sua presença midiática. Ele soube dialogar com essa sensação de que as duas grandes forças políticas da Argentina não tinham nenhuma solução para a crise. Ele soube captar essa sensação de que não importa se você elege um ou outro candidato, os riscos seguem sendo os mesmos.
Milei tem um discurso de “acabar com as castas politicas”, que na sua visão, são parasitas do Estado. Mas quando uma pessoa olha com mais atenção, vai perceber que ele também faz parte dessa casta política, afinal também é deputado. Além disso, na maior parte das províncias, teve que fazer concessões com partidos locais. Mas como não tem um partido consolidado a nível nacional, isso acaba não sendo tão evidente como no caso do peronismo ou do macrismo.
Nós ignoramos todos esses sinais. A caracterização que fazíamos antes das PASO é que a disputa estaria entre Massa e Bullrich ou Massa e Larreta. Inclusive pensávamos que Larreta tinha chances de ganhar e ser presidente. A vitória da Bullrich foi outra grande surpresa.
Então não encontramos razões para um voto defensivo no Massa. Por outro lado, as opções de esquerda foram apresentadas de forma muito fragmentada. A FITU, principal frente eleitoral da ultra esquerda, apresenta posições muito sectárias. Com seus quatro deputados hoje no Congresso, por mais que apresentem projetos que favorecem a classe trabalhadora, já tiveram posições muito polêmicas no parlamento, como por exemplo votar contra o imposto das grandes fortunas, que por fim colocou seu trabalho legislativo em função da direita. Nós geralmente chamamos o voto crítico nas organizações de esquerda, porque achamos importante fortalecer as opções de esquerda diante do inegável crescimento da direita, mas sempre com essa crítica. E nessas PASO, as organizações que compõem a FITU estavam diante de uma disputa interna totalmente autodestrutiva, envolvendo acusações de racismo e traição.
Nesse contexto, a candidatura de Juan Grabois pela lista da União pela Pátria foi uma tentativa de conter os votos que poderiam chegar ao peronismo pela esquerda. Grabois apresenta um programa mais progressista do que o de Massa, apresentando críticas à entrega dos recursos naturais e propostas como a nacionalização do lítio para financiar planos sociais. Então, por mais críticas que possamos fazer a esse programa, definitivamente é um programa mais conectado a setores sindicais e a demandas sociais de uma forma geral. Ele teve grandes resultados eleitorais nos lugares mais pobres, principalmente nos distritos do conurbano, como Lanús, La Matanza, Avellaneda…
Frente ao fascismo, sem dúvidas é necessário uma política de unidade. Temos dois meses para frear o crescimento de Milei e Bullrich. Penso que o apoio de Massa vai crescer com certeza entre os setores peronistas mais independentes, que não votaram nele nas PASO, mas também entre entre outros setores mais progressistas diante da ameaça da extrema direita. Diante do crescimento do Milei, não temos alternativa que não seja votar no Massa. Mas há muitas formas de se fazer isso. Queremos dialogar com as pessoas que votaram em Grabois e na esquerda e levantar a bandeira do socialismo, dos valores da democracia. Seguimos com a memória de companheiros como Mariano Ferreyra, Santiago Maldonado, Dario e Maxi, que são exemplos para nós de entregar-se por uma causa. Estamos convencidos de que para derrotar Bullrich e Milei e construir uma alternativa real, temos que assumir o que é necessário fazer. E nossas possibilidades tem a ver com até onde pode chegar nosso esforço coletivo.
RUA: Sim, me parece uma situação muito parecida a do Brasil. No ano passado, nós fizemos campanha para Lula, embora também não fosse nosso programa. Mas depois de quatro anos de governo Bolsonaro, da destruição total do país, que foi agravada inclusive pela pandemia, era necessário ter uma política de frente única para impedir uma nova eleição dele. Em 2018, a campanha do Bolsonaro foi bem sucedida, entre outros motivos, porque utilizou a propagação de fake news pelas redes sociais e também porque soube atrair um eleitorado jovem desiludido com a falta de perspectivas. Qual a inserção de Milei e da extrema-direita de um modo geral na juventude? Quais as principais táticas utilizadas por esse setor para ganhar capilaridade?
VF: Como eu te contava, eles estão com esse discurso de que existe uma casta política, uma burocracia estatal encastelada que nos domina, que aplica políticas socialistas. Chamam qualquer um de socialista, inclusive Larreta, que é o candidato que pensávamos que ganharia as internas do Juntos por el Cambio. O chamam de socialista e autoritário, sobretudo pelo que foi a gestão da pandemia.
Uma das razões do êxito do programa de Milei é a sua apropriação do “fora todos”, que foi uma palavra de ordem da esquerda durante a crise de 2001. Mas ele junta isso com um discurso ultraliberal de privatizar até as coisas mais básicas, como saúde e educação. E claro, em torno disso também há muita propagação de fake news, por meio de uma atividade muito exitosa nas redes sociais, com todos os estereótipos que existem sobre o socialismo, que tudo o que é público é corrupto e que ele vai acabar com tudo isso. No campo da educação, defende o fim da educação pública e propõe no lugar um sistema de vouchers. A comunidade educativa já se manifestou contra isso.
RUA: Seguindo com o tema da educação, a última pergunta que eu gostaria de fazer é sobre o papel da luta des estudantes nesse contexto de enfrentamento à extrema direita. Te pergunto isso porque em 2018, o movimento estudantil teve um papel muito importante no Brasil no movimento que ficou conhecido como “vira-voto”. Nós estudantes saíamos das universidades, muitas vezes paralisando as aulas, para conversar com as pessoas e tentar reverter o resultado eleitoral no segundo turno, após a vitória do Bolsonaro no primeiro. No ano passado, a mobilização des estudantes também foi fundamental para garantir a vitória do Lula. Você acha que algo semelhante pode acontecer na Argentina? Qual você acha que deve ser o papel do movimento estudantil e da luta dos professores para derrotar a extrema-direita?
VF: Já houve reação de estudantes e docentes diante das declarações do Milei. Agora tenho esperança de que haverá muitas grandes mobilizações, que já começaram a ser organizadas neste momento, mas estamos juntando forças. O peronismo tem muitos jovens que foram da geração das manifestações de 2017 e que desde que se tornaram governo não tem organizado muitos chamados a mobilização. Alem disso, durante a pandemia, tanto o movimento feminista, que se mobilizou pelo direito ao aborto, como o movimento estudantil, estao mais desarticulados. O setor que mais tem protagonizado as mobilizações no último período é o movimento piqueteiro. Recentemente, os povos originários também têm tido grande protagonismo, principalmente em Jujuy, nas mobilizações contra a reforma constitucional dessa província. Foi um levante muito importante, houve uma marcha de Jujuy até a Capital Federal, onde fizeram uma grande manifestação em frente ao Ministério da Justiça contra o governo de Gerardo Morales, que é o governador de Jujuy. Esses são os principais setores que têm se mobilizado na Argentina recentemente.
RUA: Muito obrigada pelas respostas. Seguimos acompanhando desde o Brasil o que se passa na Argentina, estamos juntos na luta contra o fascismo!
1. PASO, as Primarias Argentinas;
2. Mauricio Macri, ex presidente argentino (2015-19), Juntos por el cambio;
3. Alberto Fernandez, atual presidente argentino (desde 2020), Frente de Todos;
4. FITU, frente eletoral da esuqerda socialista formada por PTS, Esquerda Socialista, Partido Obrero e Movimiento Socialista de los Trabajadores;