Nas últimas semanas, o Governo Federal anunciou uma previsão de cerca de 18,2% a menos no orçamento das despesas discricionárias no setor da educação em relação a 2020. As despesas discricionárias são aquelas destinadas ao custeio e investimento, como água, luz, obras, manutenção dos bandejões, moradias estudantis e em muitos casos, também ao pagamento de bolsas de permanência estudantil. A justificativa oferecida pelo MEC, é que diante da crise econômica, é necessário enxugar os gastos da administração pública e elencar prioridades para as despesas.
Nós do Movimento RUA Juventude Anticapitalista convidamos Luciana Boiteux, professora licenciada da Faculdade de Direito da UFRJ e pré candidata a vereadora no município do Rio de Janeiro pelo PSOL, Letícia Moura, estudante de Psicologia e secretária geral do DCE da UFPE, e Clara Delmonte, 3º Vice Presidenta da União Nacional dos estudantes e estudante de Gestão Pública na UFRJ para bater um papo sobre o tema:
Na avaliação de vocês, quais são os impactos dos cortes no orçamento das Instituições Federais de Ensino para 2020?
Clara Delmonte: antes de falar sobre os cortes previstos para 2021, precisamos contextualizar: os 18,2% a menos previsto para 2021 é em cima da um orçamento que já vem sendo reduzido desde 2015. E essa não é uma movimentação isolada, é parte de um projeto de país que entende a educação enquanto uma mercadoria e que, por isso, ela deve servir aos interesses do capital, e não do povo. Logo, não há porque investir na educação pública. E para esse projeto, não interessa que pretos e pobres estejam estudando e produzindo conhecimento ou trabalhando dignamente dentro das universidades, então, sem dúvidas, são esses os primeiros impactados com os cortes -seja com a precarização das políticas de permanência estudantil, seja com o sistemático atraso e/ou suspensão do pagamento das trabalhadoras e trabalhadores terceirizados. Em um momento em que as condições de vida estão drasticamente piores, com famílias inteiras perdendo seus empregos, as universidades deveriam estar recebendo verbas emergenciais para garantir a permanência dos estudantes, e não o contrário.
Letícia Moura: Ainda há pouco, em 2019, enfrentamos uma situação de grande incerteza e precariedade na UFPE com o congelamento de cerca de 30% anunciado pelo governo; laboratórios e salas de aula tiveram que cortar o uso de ar-condicionado para evitar que a universidade fechasse as portas. Quando falamos em cortes nas despesas discricionárias, estamos nos referindo ao corte da energia, da água, da luz, do cancelamento de contratos de terceirizados, ou seja, há impactos diretos na vida dos trabalhadores e estudantes. Os 4,2 milhões anunciados que podem ser retirados do MEC em 2021 só escancaram que educação jamais poderá ser prioridade de um governo que se sustenta na mentira e no negacionismo. Num momento em que precisamos estar mais fortes e economicamente amparados para um retorno seguro no pós-pandemia, como se falar em cortes de elementos essenciais, inclusive, para salubridade? Qualquer corte na educação é simplesmente inadmissível.
Luciana Boiteux: O impacto dessa decisão de retirar verba das universidades federais e das instituições federais de ensino de maneira geral vai ser terrível para educação, para pesquisa e para população brasileira. A desculpa do governo é a crise econômica, mas no fundo sabemos que é uma crise de prioridades e que o alvo dos cortes é a população mais pobre, a classe trabalhadora. Nesse momento de crise devia ser oposto, deveríamos investir nas universidades, nas pesquisas, as universidades qualificam a população para mercado de trabalho e é um absurdo que isso esteja sendo feito.
Nos encontramos em meio a um cenário de profundas crises que se somam -econômica, sanitária, ambiental, social e política-. Nesse contexto, qual deve ser o papel das Instituições Federais de Ensino na busca por saídas para essas crises?
Luciana Boiteux: Na minha visão, a Universidade Pública foi feita justamente para pensar e formular o futuro. Não tenho dúvida que é esse o espaço de potências dos estudantes, dos técnicos e dos docentes para enfrentar a pandemia e construir saídas para o pós. Mas para isso precisamos de investimento e políticas que fortaleçam a universidade. E o que vemos é que o Governo Bolsonaro enxerga a universidade pública como uma ameaça e responde com ataques. Ele vê como ameaça porque ela é livre, pensante, não tá submissa aos ditames do governo autoritário. Essa é a contradição que estamos vivendo: precisamos de uma universidade pública forte para potencializar as soluções e fortalecer a construção do nosso futuro, mas estamos sendo alvo porque não nos curvamos a esse governo, que, em última análise, foi o responsável por agravar consequências da pandemia aqui no Brasil.
Letícia Moura: Disseram que a universidade pública era lugar de balbúrdia e a pandemia evidenciou a fundamental importância desse espaço para toda a população brasileira. São as universidades públicas através de institutos e centros de pesquisa que assumem junto aos profissionais de saúde a linha de frente no combate ao coronavírus – produzindo testagens, desenvolvimento de fármacos e vacinas, apoio psicológico, estudo do avanço pandêmico e diversas outras ações –. Na UFPE, por exemplo, tivemos um edital específico para desenvolver projetos de combate e enfrentamento ao coronavírus, além de um host site com diversas informações do que tem-se produzido na universidade. Mas é preciso ir além, é preciso pensar sempre no tripé de ensino, pesquisa e extensão, aliado ao projeto de educação que acreditamos: uma educação que seja instrumento de libertação, atenta a realidade social e que nos ajude a construir um outro mundo possível.
Clara Delmonte: Acredito que o conhecimento produzido na Universidade deve estar à serviço da sociedade. Nesse momento isso significa sim superar a crise sanitária aberta pela pandemia, mas pra isso precisamos ir mais a fundo no problema: o COVID-19 é o sintoma e para enfrentá-lo, precisamos construir saídas também para a crise econômica, política, ambiental e social que nos fez chegar onde estamos. Esse é o desafio do nosso tempo, e para estar à altura, é preciso rever as bases epistemológicas das universidades, refletir sobre a possibilidade de uma educação em outros formatos, aprender com as resistências que emergem de solidariedade entre os debaixo, travar uma disputa curricular que possibilite disputar esse novo mundo que se abre como possibilidade.
A educação foi protagonista no principal palco de enfrentamento às políticas do Governo Bolsonaro até agora, conseguindo inclusive reverter parte dos cortes que haviam sido propostos por Abraham Weintraub, então Ministro de Educação. Com mais um anúncio de cortes e o crescimento do número de intervenções nas escolhas dos dirigentes das IFES, por onde você avalia que deve caminhar o movimentos docente, dos servidores e estudantes a fim de repetir o feito de 2019?
Luciana Boiteux: Eu que sempre estive na luta sindical, na luta pela universidade, por melhores condições de trabalho, pelo reconhecimento da importância do profissional da educação, vejo com muita preocupação as intervenções na escolha dos dirigentes das instituições públicas. Diante desse cenário é muito urgente que a gente tenha disciplina, organização e construa a resistência da forma mais unificada possível, para que a gente possa fortalecer as lutas contra o governo, articulada entre os estudantes, docentes e técnicos administrativos e assim manter a universidade viva.
Letícia Moura: O tsunami da educação evidenciou o poder que temos ao articular, ou perceber a articulação, de pautas da educação com as demandas da classe trabalhadora. Mesmo sem podermos construir atos de rua massivos como em 2019, tivemos importantes vitórias, frutos da mobilização do conjunto dos movimentos que defendem a educação pública, como a queda do ministro Weintraub e a aprovação do FUNDEB.
Clara Delmonte: Estamos em meio a uma disputa de projeto de país e derrotar o bolsonarismo e a extrema direita é nossa tarefa. O Tsunami só foi capaz de incidir na correlação de forças do país porque se transformou em uma luta de toda a população. Não só professores, técnicos e estudantes, mas também de seus familiares, dos movimentos de mulheres, negritude, LGBTs, sem teto, e tantos outros brasileiros que se colocaram enquanto parte daquela luta. Sem dúvidas, pra nós que acreditamos que a é RUA a parte principal da cidade, o contexto da pandemia complicou muito a vida, mas também nos fez forjar novas ferramentas: mostramos nossa força nas redes e também em ações sem aglomeração coordenadas em todo o Brasil. Aprendemos e construímos a resistência que emergiram dos bairros e periferias através das redes de solidariedade, dos levantes anti racistas, das greves dos motoristas de aplicativos, e acredito que esse é o caminho que devemos seguir para disputar contra o projeto de morte que governa o país hoje.